Tudo menos um sentido proibido
Todas as sextas-feiras recebo a newsletter da loja AnAnAnA. Não procuro novidades, mas não me faço rogada se elas vierem até mim. Gosto destas missivas sobretudo pelo texto introdutório que as acompanha. Um excerto da última que chegou:
Nihilist Spasm Band, o grupo avô do noise, em declarações provocadoras: "O meu dicionário diz que música é a arte de organizar sons e que é, igualmente, uma sucessão de sons agradáveis. Ora, os nossos sons não são nem organizados nem agradáveis, e em consequência, por definição, não são música. A música poderá estar, eventualmente, no ouvido de quem escuta. Como nunca ambicionámos fazer música convencional, o facto de nunca o termos conseguido não é uma derrota, mas um sucesso. Um aspecto importante da música é a capacidade de ser reproduzida por outros executantes.(...)"
Pouco depois de ler isto, meti-me num carro e saí de Lisboa. Só na segunda-feira de manhã me apercebi que tinha havido uma falha com o servidor que a AnAnAna utiliza (ou lá o que foi que aconteceu), o que fez com que as caixas de correio electrónico de muita gente (incluindo pessoas que nem subscrevem a dita) tivessem sido bombardeadas com mensagens de erro (cerca de 300), em rede. Quando me dei conta da situação, já o problema tinha sido resolvido, mas perdi (porque quis) uma boa meia-hora a percorrer alguns mails, de pessoas ora irritadas (a pedir para serem removidas da mailing-list) ora divertidas com a situação, antes de os apagar.
Parece que a certa altura se gerou uma espécie de fórum. Havia quem falasse em "ciberdemocracia", "acontecimento histórico" e "estamos unidos ciberneticamente, irmãos", e ainda de "performance on-line". Alguém também perguntava "quem é a p*** da Ana?", logo seguido de um "viva Portugal". Elogios aos Macs, em detrimento dos PCs (a velha discussão): "A diferença entre um Mac e um PC é a mesma que vai entre um Alfa Romeo e o meu Fiat Punto." O Windows e o Linux, e mais não sei o quê. Pelo meio vejo endereços de amigas e amigos meus, a refilar. E alguém que diz: "Máquinas de escrever e pombos correio, é o que este país precisa." (Vamos aqui na mensagem número duzentos e qualquer coisa, domingo à noite.)
Depois surge isto:
EU SOU O ANJO DO DESESPERO
[Heiner Müller - Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro]
Eu sou o anjo do desespero.
Das minhas mãos distribuo a embriaguês,
a estupefacção, o esquecimento, gozo e
tormento dos corpos.
Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito.
À sombra das minhas asas mora o terror.
Minha esperança é o último suspiro.
Minha esperança é a primeira batalha.
Eu sou a faca com que o morto arromba o seu caixão.
Eu sou aquele que será.
Meu descolar é a sublevação, meu céu o abismo de amanhã.
Há quem fale entretanto de "sentir um vazio" quando a assistência técnica resolver o problema. Outro, mais pragmático, pergunta: "E por aqui, arranja-se emprego?" Mas não faltam líricos: "Pergunto-me se haverá pessoas que vão conhecer-se por causa desta corrente de mails, quem sabe apaixonar-se e até mais tarde gerar um filho. Por favor, vão dando notícias. E se for menina, podia ser Anita." E acrescenta em post-scriptum: "Tenho de arranjar maneira de resolver este meu problema com os domingos à noite." Outro que nos escreve do Brasil e que diz estar a acompanhar com agrado esta troca de mensagens: "Continuem!" E bloggers metidos ao barulho, a deixar links directos para posts sobre o happening.
Mas a melhor mensagem foi uma das últimas. Antes alguém se havia questionado sobre qual o sentido da vida. E a resposta, enfim: "Pode ser tudo menos um sentido proibido."
AnAnAnA, por favor, quero continuar a receber a newsletter.
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