Estado de Graça
L'Amore (que vi esta quarta-feira na Cinemateca), de Rossellini, divide-se em duas histórias, ambas protagonizadas por Anna Magnani. Começa com a mise-en-scène (não toco piano, mas falo francês) do monólogo escrito por Jean Cocteau, La Voix Humaine - livro que não estou a encontrar na estante. Se o tiver emprestado a alguém que esteja desse lado, pede-se o favor de... É uma tragédia. (O texto teatral, não o facto de eu desconhecer o paradeiro do meu livro.) O discurso pelo telefone da mulher desesperada mete dó. Foi abandonada pelo amante, que a trocou por outra. Ele está do outro lado da linha, mas apenas se subentende o que diz. Ela agarra-se ao fio do aparelho, como se a vida dependesse disso. É angustiante. Um grande desempenho de Anna Magnani. Porém o meu constrangimento falava mais alto. Já estava com pressa de chegar à segunda história, que foi o que me levou naquele dia à Barata Salgueiro.
Em Il Miracolo, Nannina é a maluquinha da aldeia que quando está a guardar as cabras na montanha julga ter uma aparição de São José (interpretado por Federico Fellini, magnífico!). Como é óbvio, "São José" não é São José. É uma criatura de carne e osso, que apareceu por ali, e que silenciosamente se deixa ficar a ouvir o delírio de Nannina. Vai-lhe tirando as medidas, enquanto ela fala, e passa-lhe a garrafa de vinho para as mãos. Ela, ingénua, vai dando uns goles. Com os vapores etílicos, começa a ficar tonta e encalorada. O delírio aumenta. Está no Paraíso e às tantas não vê mais nada, desmaia com o êxtase. Fica completamente à mercê do homem. Na cena seguinte, "São José" desapareceu. De volta à aldeia, Nannina relata o milagre. Pois sim, dirão os outros habitantes. Meses depois, descobre-se que está grávida. Nannina acredita piamente que foi abençoada com uma concepção imaculada, que Deus a encheu de Graça. É a chacota da aldeia. Nannina foge. Alienada, acaba por dar à luz numa capela, no alto da montanha, sem ninguém por perto. Feliz.
Um filme extraordinário (realizado por Rossellini, com uma história produto da imaginação de Fellini). Mas o que para mim foi mais extraordinário foi a personagem não me ter inspirado piedade. Até senti uma pontinha de inveja. A sua crença é tão profunda, tão libertadora. Ela acredita, é quanto baste. L'Amore.
"O que importa é a fé dos homens. Nada mais conta. O resto é a superficialidade dos homens."
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Escuto.