quarta-feira

MÁRIO CESARINY (1923-2006)
EM AUTO-ENTREVISTA


K: (...)Mas apesar de tudo, ou de todos, não acha um pouco forte para começar?
MC: Acho. Vamos cortar.
K: Não corta nada. E se quiser até ponho que o que fizeram à Casa dos Bicos é cópia quase símile da que apareceu na Exposição do Mundo Português a demonstrar a pujança do Império: a janela central pseudo-pseudo e a bicalhada toda a ir por ali fora até formar a testa do Frankenstein. Vi no Expresso Revista. Mas, mesmo assim, acha que vale a pena falar nisso, agora que já não tem remédio?
MC: O já não tem remédio é o que se diz do morto. E se juntarmos aquela que a Agustina Luís há pouco sublinhava, citando do rifonário cívico português, que "o melhor é inimigo do bom", obtemos o espectro desse universo.
K: Um universo bastante original. Próximo do macaco, pode-se dizer.
MC: Muito próximo. Sobretudo quando lembramos outros processos evolutivos. Outros modos, outras línguas. O Oscar Wilde que dizia: "Para mim, o óptimo é suficientemente bom".
K: O Wilde foi preso.
MC: Também é verdade.(...)
K: Li uma crónica sua em que dizia que por toda aquela zona a que o bulldozer limpou o sarampo – a velha Mouraria hoje Martim Moniz – havia montes de casas de... putas.
MC: De putas. Todo o genocídio invoca a Moral e a Constituição. Fica bem. Ali, havia ruas e ruelas lindíssimas, travessas impensáveis, passagens extraordinárias. Creio que, se as tivessem deixado sobreviver, seriam hoje um centro urbano único, mais de povo do que o Bairro Alto. O Bairro Alto é todo pombalino, monumental. Responde com nobreza ao carácter de cidade imperial que a Lisboa que vai do Largo do Rato até ao rio apresenta. Aquela Mouraria era a topografia do gatafunho, o labirinto possível depois da queima do Mouro. E, sim, num extenso passo que não dava frente para a Rua da Palma, as putas. As putas, os óis-óis de bairro, a maruja de guerra que nenhum escritor português conseguiu descrever como o faz em três linhas o Rámon Gomez de La Serna...
K: É. Porque será?
MC: O escritor português não sai do escritório. Faz-lhe mal aos pés. É gente de candeeiro de mesa e secretária "capital do móvel" inamovível. Prefere a conta da electricidade ao gasto corporal. Este reserva-o todo para a gloriosa maçada de ir receber o Prémio de não ter ido a lado nenhum.
K: O que são os óis-óis de bairro?
MC: ...as putas, os óis-óis de bairro, a maruja, os faquistas, os Buiças de aluguer e os de convicção. Honestíssimas, meretíssimas putas! A mim, ainda menino, davam-me o susto mestre, a visão do sagrado.(...)

Revista K, Nº2, Novembro 1990, pág. 35-36

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