sábado

Continuidade

Lisboa, 10 Dezembro 2005

Querida Luísa,
Aqui tens o poema de Herberto Helder que me pediste, publicado em "Ou o Poema Contínuo", pela Assírio & Alvim, em Setembro de 2004. Espero que assim possas dissipar as dúvidas que te surgiram quanto à pontuação, métrica, versos e mesmo algumas palavras que te parecem diferentes na edição que encontraste aí em Barcelona.

Tríptico
II

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor,

que te procuram.


Fiz a cópia do poema cuidadosamente, sentada num cantinho da Fnac (Chiado). Ao meu lado estava um amigo, que já não encontrava há algum tempo, embrenhado na leitura de "À Espera de Godot". Contou-me que tem ido lá todas semanas para ler algumas páginas, deixa o livro na estante marcado com um papel e quando volta encontra-o sempre à sua espera... Também achei curioso descobrir que em "Ou o Poema Contínuo", a seguir ao Tríptico, vem O Amor em Visita. Já lá vão alguns anos desde que li este poema pela primeira vez e lembrei-me dum episódio que se passou quando andava na faculdade. Tive um professor de literatura portuguesa contemporânea de que gostei muito, não sei se pelos poemas que ele escolhia, se por me ter introduzido a alguns autores que só conhecia de nome (Jorge de Sena, por exemplo) ou se seria apenas pela forma estimulante como falava sobre literatura. Sei que durante um semestre me senti completamente arrebatada. Participava muito nas aulas (mais do que o habitual), mas era sempre o professor que fazia a leitura dos poemas. Até que, no dia em que começou a falar de Herberto Helder, pediu para que fosse eu a ler o início d'O Amor em Visita:

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.
(...)


A leitura até correu bem - era a primeira vez que lia aquele poema - mas foi demasiado intenso para mim. Estávamos em Junho, fazia muito calor... Fiquei zonza, pensei que desmaiava! Entretanto ele foi pedindo a outros colegas que também lessem e eu fiz um esforço para conseguir disfarçar o meu embaraço. Provavelmente ninguém reparou (nem mesmo o professor), mas seja como for não abri a boca nem voltei a pôr o dedo no ar nas aulas seguintes. Pouco depois chegaram as férias do verão (e ainda bem). Estou convencida que o dezoito que apareceu na pauta, tendo sido a classificação mais alta da turma, se deveu mais ao meu entusiasmo do que a qualquer outra coisa.

Como tens passado os últimos dias? O sol continua a brilhar? E os churros com chocolate quente, ao final da tarde, no café da Ópera? Obrigada também pelos passeios nas ruelas da Ciutat Vella. As deliciosas tapas e as esquinas. Em casa, os cigarros fumados na varanda e os (sor)risos.

Um beijo da tua amiga,
Sara

P.S. Só depois de ter transcrito para o meu bloquinho o poema de Herberto Helder é que me ocorreu procurá-lo na Internet. Pois encontrei-o, num blogue que costumo visitar, o Diotima. (E aqui a primeira parte do Tríptico.) Ficas ainda a conhecer o Vidro Duplo, que tem um interesse muito limitado mas... é meu.

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