Eco
[para a Charlotte]
Marcel Proust
Vou contar sem nenhum véu
o que a Proust aconteceu
que era um velho cataplasma
oprimido pela asma
com a vida vigiada
por uma velha criada.
Mas um dia enquanto à tardinha
chá bebendo se entretinha,
sentiu na boca um gosto arcano,
indizível, sobre-humano,
como se em casa não estivesse,
fraco e opresso pela tosse,
mas de repente, bem se vê,
se encontrasse já em Combray,
quando às saias agarradinho
da avó e da mãezinha
adormecia o coitadinho
depois do último beijinho
(que esperava perturbado,
com o coração alterado,
como se fosse aquele gentil
beijo como um Perequil).
Preso na calha morta
da lembrança, com a torta
ainda de tília embebida
na garganta, de seguida,
o Marcelo de repente
um programa viu à sua frente
e decidiu sem hesitar
seu refúgio procurar
das asperezas do presente
numa acção progrediente
de procura do passado
já perdido e reencontrado
por magia extraordinária
de memória involuntária.
E voltou sem hesitar
os Campos Elísios a recordar,
quando alegre ao livre ar
com Gilberta ia brincar -
que traiu, que triste fim,
com a gótica Albertina,
maliciosa campesina
que de bicicleta vinha.
E muito, a bem dizer,
na praia teve que fazer,
e alcançou por fim o clou
ao conhecer Saint-Loup.
Revivia em seu coração
de Verdurim o salão,
onde ele se armava em fã
daquele dandy de Swan
(que muito foi falado
por com Odette ter casado
que era sim uma concubina
mas de classe superfina...)
e com muita discrição
de Charlus a perversão
tolerou com o fim insano
de parecer mais mundano,
filiado na camorra
de Sodoma e Gomorra.
Finalmente cumpre o voto
e acede, pio e devoto,
ao santuário assaz charmant
onde oficiam os Guermantes.
Mas apenas isso contar
claro que não vos põe a par
do sentido substancial
dessa viagem temporal
que Marcel soube encarar
em medida tão exemplar.
Ler sem ser interrompido
esse romance desmedido
eu garanto, e é sabido,
que não é tempo perdido.
Umberto Eco, O segundo diário mínimo, Difel, 1993, pp. 290-292
Sem comentários:
Enviar um comentário
Escuto.